No e-mail a Nora dizia: "olha que lindo, nosso "Reimôn"!!!" e assim fui introduzida a história de Raymond Frajmund.
Brasília, sábado, 28 de novembro de 2009
50 bravos candangos
Do holocausto à esperança
Prisioneiro do mais terrível campo de concentração, Raymond Frajmund fugiu durante a Marcha da Morte. Reencontrou a família, mas, desiludido com a Europa, veio para o Brasil em 1953 e, desde 1960, vive em Brasília
· Conceição Freitas
Zuleika de Souza/CB/D.A Press |
“Num mundo que se destruía, aqui havia o que construir. Era uma cidade só com futuro, sem passado. Brasília era um lugar fora do perigo e das turbulências. Aqui era possível ser útil, ser necessário, ajudar” |
Raymond Frajmund/Divulgação |
A foto famosa: os embaixadores da Noruega e da Austrália com seus secretários, na L2 Sul, a caminho da embaixada, em 7 de junho de 1960 |
Ele tem 82 anos e uma tatuagem no antebraço esquerdo: o número 133381 escrito em azul. Era sua identidade em Auschwitz, campo de concentração e extermínio que se tornou símbolo de um dos mais terríveis episódios da história da humanidade. Judeu, nascido na Polônia, criado na Bélgica, Raymond Frajmund é um bravo candango. Dos 15 aos 17 anos, foi prisioneiro das tropas de Hitler. Vive no Brasil desde 1953 e em Brasília desde 1º de junho de 1960.
Para entender o que a nova capital representou para este sobrevivente do holocausto, é preciso voltar ao lugar e ao tempo do horror. Raymond, que no Brasil virou Reimôn, vivia com os pais e a irmã em Bruxelas, na Bélgica. A irmã morreu em um bombardeio, durante a invasão alemã em 1940. Com identidade falsa, pais e filho esconderam-se em um apartamento na periferia da cidade até que, em 1942, Raymond foi preso em uma blitz e levado para Auschwitz, no Transporte 21, com outros 1.552 prisioneiros. Desses, 1.475 foram mortos logo que chegaram ao campo de concentração. Quando a guerra acabou, só 40 estavam vivos, entre os quais um único adolescente.
Foram dois anos de trabalhos forçados, ração de 200 calorias por dia e medo de ser o próximo a ir para a câmara de gás. Às vésperas da libertação dos prisioneiros de Auschwitz pelo exército russo, os alemães retiraram 4 mil presos e forçaram-lhes a uma longa caminhada, sob um frio de 20º abaixo de zero, durante vários dias. Raymond estava entre eles. No primeiro dia de fuga, os carrascos distribuíram a cada prisioneiro um pão de aproximadamente um quilo. Era tudo o que comeriam durante a Marcha da Morte, como ficou conhecida.
Numa das paradas, para recolher mais prisioneiros, o adolescente conseguiu fugir. “Não queria mais continuar daquele jeito. Queria morrer ou ser livre”. Raymond escondeu-se num barraco abandonado, dormiu no terceiro andar de um beliche e, quando acordou, encontrou outros fugitivos. Estava pesando 35 kg distribuídos em 1,70m. Dias depois, uma tropa de soldados russos encontrou aquele grupo de sobreviventes do holocausto e deixou-os partir. Estavam livres.
Depois de quatro meses de caminhada (a guerra continuava), Raymond finalmente chegou em casa, em Bruxelas. Reencontrou os pais, mas o filho não era mais o mesmo. Passado algum tempo, teve uma conversa com o pai: “Já trabalhei para o resto da minha vida, não vou trabalhar mais, não quero entrar nesse sistema. Não quero participar dessa farsa. Posso viver com um copo d’água e um pedaço de pão”. O polonês havia virado hippie antes mesmo de o movimento paz & amor se espalhar pelo mundo. O ex-prisioneiro do nazismo estava “p. da vida com a Europa, a Europa que nos massacrou. Estava realmente em divórcio com ela.”
Numa noite do ano de 1952, portanto, seis anos depois do fim da guerra, Raymond assistia a um concerto de música erudita do brasileiro Eleazar de Carvalho (1919-1996) em Bruxelas. Acostumado aos velhos maestros de longa cabeleira branca, ele estranhou a juventude do brasileiro a quem via de costas. Mais ainda quando ele começou a dançar ao ritmo da música. “Nunca havia visto um chefe de orquestra tão bonito, tão elegante, tão gracioso e tão jovem. Isso me tocou muito e eu me disse, naquele dia: ‘Preciso conhecer esse país’”. Até aquele concerto, Raymond nunca havia ouvido falar de um lugar chamado Brasil. No ano seguinte, o polonês irado com a Europa desembarcava no país do maestro dançarino.
Vida de fotógrafo
Três anos depois, estava casado com Rose, brasileira filha de diplomatas franceses, artista plástica que ficara no país porque havia se apaixonado por um francês criado na Polônia, meio largado, meio zangado, muito desiludido e muito divertido. Raymond frequentava o meio cultural paulistano e foi nele que conheceu o jornalista Claudio Abramo, um dos mais importantes do país. Abramo estava com um problema: precisava enviar profissionais para a sucursal de Brasília do jornal O Estado de São Paulo, mas ninguém queria vir.
Raymond veio para ficar um ou dois meses. Nunca mais saiu. Uma semana depois de chegar, fez uma das fotos mais conhecidas da nova capital: a dos homens de fraque atravessando o cerrado bravio. A foto faz parte do acervo do Itamaraty. Eram os embaixadores da Noruega e da Austrália e dois secretários caminhando na L 2 Sul para a inauguração da primeira embaixada em Brasília, em 7 de junho de 1960. A partir de então, o jornal claramente contrário à mudança da capital passou a publicar diariamente “umas cinco fotos” sobre a cidade.
O jornal não havia mudado sua postura editorial. As fotos é que revelavam, sob o olhar de Raymond, o que de extraordinário acontecia no Planalto Central. “Depois de um mês, eu já me divertia muito. Era ótimo. Brasília era um encanto, uma aventura. Eu dormia num anexo do Brasília Palace Hotel. Acordava todas as manhãs com uma camada de dois milímetros de poeira sobre o lençol, o equipamento, tudo”. Dois meses depois, trouxe a mulher, Rose, para conhecer a capital moderna. Se ele havia gostado, ela se apaixonou: “Era um céu fascinante, um horizonte incrível”, diz ela, hoje, aos 78 anos, com os olhos faiscantes.
A cidade havia sido inaugurada dois meses antes, mas o ritmo ainda era de construção. “As máquinas trabalhavam dia e noite”. Pela primeira vez, Raymond teve a sensação “de participar de algo bonito, grandioso, livre.” O aventureiro que queria arrancar de si suas raízes com a Europa, que não queria se fixar em nenhum outro chão, teve pela primeira vez vontade de ter um filho e um pedaço de terra — vermelha, no caso. “Foi uma coisa muito forte. Tive a impressão de ter achado um porto seguro, um porto tranquilo, onde eu podia pensar, criar uma família”. Algum tempo depois, Raymond percebeu que quando veio para Brasília estava “à procura inconsciente de raízes.”
Enquanto a Europa tentava se recuperar de uma guerra que dizimou cidades inteiras e matou 50 milhões de pessoas, dos quais 6 milhões de judeus, o Brasil inventava uma nova cidade. “Num mundo que se destruía, aqui havia o que construir. Era uma cidade só com futuro, sem passado. Eu ainda estava machucado pela guerra. Brasília era um lugar fora do perigo e das turbulências. Aqui era possível ser útil, ser necessário, ajudar”.
Logo vieram as decepções. “Tudo o que a gente sonhava, imaginava, a ideia inicial de fazer uma cidade socialista num país capitalista foi uma utopia que não se realizou, se desfez pela cobiça do ser humano”. Quando veio o golpe militar, o ex-prisioneiro quis ir embora de Brasília e do Brasil. No dia da invasão da Universidade de Brasília, em agosto de 1968, o fotógrafo do Estadão chegou em casa vomitando. Recusava-se a aceitar o terror novamente. Dois anos depois, deixou o fotojornalismo e virou empresário.
“Brasília me deu um chão”, ele confere — 49 anos, dois filhos (Patricia e Jean-Claude) e três netos (Leon-Aaron, Chloe e João Maurício) depois. E guarda fortes lembranças, como a de ter sido o primeiro morador da SQS 305. “Uma quadra inteira pra mim, pude escolher o apartamento que eu queria. Escolhi um no terceiro andar, com o sol no nascente e perto de um posto de gasolina. Era pra ouvir algum barulho. Aqui era muito silêncio”. Mais significativa ainda é a presença de um importante personagem na vida de Raymond Frajmund: “Juscelino Kubitschek era um homem extraordinário. A sombra dele caía sobre a cidade. Adorávamos ele, ele representava o grande pai. Ele nos protegia.”
Para entender o que a nova capital representou para este sobrevivente do holocausto, é preciso voltar ao lugar e ao tempo do horror. Raymond, que no Brasil virou Reimôn, vivia com os pais e a irmã em Bruxelas, na Bélgica. A irmã morreu em um bombardeio, durante a invasão alemã em 1940. Com identidade falsa, pais e filho esconderam-se em um apartamento na periferia da cidade até que, em 1942, Raymond foi preso em uma blitz e levado para Auschwitz, no Transporte 21, com outros 1.552 prisioneiros. Desses, 1.475 foram mortos logo que chegaram ao campo de concentração. Quando a guerra acabou, só 40 estavam vivos, entre os quais um único adolescente.
Foram dois anos de trabalhos forçados, ração de 200 calorias por dia e medo de ser o próximo a ir para a câmara de gás. Às vésperas da libertação dos prisioneiros de Auschwitz pelo exército russo, os alemães retiraram 4 mil presos e forçaram-lhes a uma longa caminhada, sob um frio de 20º abaixo de zero, durante vários dias. Raymond estava entre eles. No primeiro dia de fuga, os carrascos distribuíram a cada prisioneiro um pão de aproximadamente um quilo. Era tudo o que comeriam durante a Marcha da Morte, como ficou conhecida.
Numa das paradas, para recolher mais prisioneiros, o adolescente conseguiu fugir. “Não queria mais continuar daquele jeito. Queria morrer ou ser livre”. Raymond escondeu-se num barraco abandonado, dormiu no terceiro andar de um beliche e, quando acordou, encontrou outros fugitivos. Estava pesando 35 kg distribuídos em 1,70m. Dias depois, uma tropa de soldados russos encontrou aquele grupo de sobreviventes do holocausto e deixou-os partir. Estavam livres.
Depois de quatro meses de caminhada (a guerra continuava), Raymond finalmente chegou em casa, em Bruxelas. Reencontrou os pais, mas o filho não era mais o mesmo. Passado algum tempo, teve uma conversa com o pai: “Já trabalhei para o resto da minha vida, não vou trabalhar mais, não quero entrar nesse sistema. Não quero participar dessa farsa. Posso viver com um copo d’água e um pedaço de pão”. O polonês havia virado hippie antes mesmo de o movimento paz & amor se espalhar pelo mundo. O ex-prisioneiro do nazismo estava “p. da vida com a Europa, a Europa que nos massacrou. Estava realmente em divórcio com ela.”
Numa noite do ano de 1952, portanto, seis anos depois do fim da guerra, Raymond assistia a um concerto de música erudita do brasileiro Eleazar de Carvalho (1919-1996) em Bruxelas. Acostumado aos velhos maestros de longa cabeleira branca, ele estranhou a juventude do brasileiro a quem via de costas. Mais ainda quando ele começou a dançar ao ritmo da música. “Nunca havia visto um chefe de orquestra tão bonito, tão elegante, tão gracioso e tão jovem. Isso me tocou muito e eu me disse, naquele dia: ‘Preciso conhecer esse país’”. Até aquele concerto, Raymond nunca havia ouvido falar de um lugar chamado Brasil. No ano seguinte, o polonês irado com a Europa desembarcava no país do maestro dançarino.
Vida de fotógrafo
Três anos depois, estava casado com Rose, brasileira filha de diplomatas franceses, artista plástica que ficara no país porque havia se apaixonado por um francês criado na Polônia, meio largado, meio zangado, muito desiludido e muito divertido. Raymond frequentava o meio cultural paulistano e foi nele que conheceu o jornalista Claudio Abramo, um dos mais importantes do país. Abramo estava com um problema: precisava enviar profissionais para a sucursal de Brasília do jornal O Estado de São Paulo, mas ninguém queria vir.
Raymond veio para ficar um ou dois meses. Nunca mais saiu. Uma semana depois de chegar, fez uma das fotos mais conhecidas da nova capital: a dos homens de fraque atravessando o cerrado bravio. A foto faz parte do acervo do Itamaraty. Eram os embaixadores da Noruega e da Austrália e dois secretários caminhando na L 2 Sul para a inauguração da primeira embaixada em Brasília, em 7 de junho de 1960. A partir de então, o jornal claramente contrário à mudança da capital passou a publicar diariamente “umas cinco fotos” sobre a cidade.
O jornal não havia mudado sua postura editorial. As fotos é que revelavam, sob o olhar de Raymond, o que de extraordinário acontecia no Planalto Central. “Depois de um mês, eu já me divertia muito. Era ótimo. Brasília era um encanto, uma aventura. Eu dormia num anexo do Brasília Palace Hotel. Acordava todas as manhãs com uma camada de dois milímetros de poeira sobre o lençol, o equipamento, tudo”. Dois meses depois, trouxe a mulher, Rose, para conhecer a capital moderna. Se ele havia gostado, ela se apaixonou: “Era um céu fascinante, um horizonte incrível”, diz ela, hoje, aos 78 anos, com os olhos faiscantes.
A cidade havia sido inaugurada dois meses antes, mas o ritmo ainda era de construção. “As máquinas trabalhavam dia e noite”. Pela primeira vez, Raymond teve a sensação “de participar de algo bonito, grandioso, livre.” O aventureiro que queria arrancar de si suas raízes com a Europa, que não queria se fixar em nenhum outro chão, teve pela primeira vez vontade de ter um filho e um pedaço de terra — vermelha, no caso. “Foi uma coisa muito forte. Tive a impressão de ter achado um porto seguro, um porto tranquilo, onde eu podia pensar, criar uma família”. Algum tempo depois, Raymond percebeu que quando veio para Brasília estava “à procura inconsciente de raízes.”
Enquanto a Europa tentava se recuperar de uma guerra que dizimou cidades inteiras e matou 50 milhões de pessoas, dos quais 6 milhões de judeus, o Brasil inventava uma nova cidade. “Num mundo que se destruía, aqui havia o que construir. Era uma cidade só com futuro, sem passado. Eu ainda estava machucado pela guerra. Brasília era um lugar fora do perigo e das turbulências. Aqui era possível ser útil, ser necessário, ajudar”.
Logo vieram as decepções. “Tudo o que a gente sonhava, imaginava, a ideia inicial de fazer uma cidade socialista num país capitalista foi uma utopia que não se realizou, se desfez pela cobiça do ser humano”. Quando veio o golpe militar, o ex-prisioneiro quis ir embora de Brasília e do Brasil. No dia da invasão da Universidade de Brasília, em agosto de 1968, o fotógrafo do Estadão chegou em casa vomitando. Recusava-se a aceitar o terror novamente. Dois anos depois, deixou o fotojornalismo e virou empresário.
“Brasília me deu um chão”, ele confere — 49 anos, dois filhos (Patricia e Jean-Claude) e três netos (Leon-Aaron, Chloe e João Maurício) depois. E guarda fortes lembranças, como a de ter sido o primeiro morador da SQS 305. “Uma quadra inteira pra mim, pude escolher o apartamento que eu queria. Escolhi um no terceiro andar, com o sol no nascente e perto de um posto de gasolina. Era pra ouvir algum barulho. Aqui era muito silêncio”. Mais significativa ainda é a presença de um importante personagem na vida de Raymond Frajmund: “Juscelino Kubitschek era um homem extraordinário. A sombra dele caía sobre a cidade. Adorávamos ele, ele representava o grande pai. Ele nos protegia.”